sexta-feira, 7 de março de 2008

A sucata mental

O senador Jefferson Péres, do PDT-AM, faz uma análise brilhante do atraso mental de nossa sociedade na Folha de São Paulo de hoje:

"Só vai entender a realidade do mundo atual quem tiver a noção clara da natureza, da evolução e do papel de duas instituições fundamentais em qualquer país: o Estado e o mercado."

Segue o texto na íntegra:


A Sucata Mental (Jefferson Péres)

ANOS ATRÁS, alguém afirmou, com muita verve: "Um dos graves problemas do Brasil é a sucata mental. O país está povoado de idéias obsoletas".
A frase só não é perfeita por se haver restringido ao Brasil, quando na verdade tem aplicação universal. Em toda parte, políticos, economistas e intelectuais, principalmente oriundos da antiga esquerda, vêem a realidade de modo desfocado, porque não conseguem livrar-se de conceitos e pressupostos que perderam validade no contexto do mundo de hoje.
Durante dois séculos, o embate político em todo o mundo foi marcado pela dicotomia esquerda x direita, que a partir do "Manifesto Comunista", de Marx, em 1848, ganhou concretude, na forma de duas propostas antagônicas. De um lado, o modelo vigente no mundo real, que o marxismo rotulou de capitalismo; de outro, o seu oposto, um modelo ideal, chamado de socialismo, que se tornou real a partir da Revolução Russa de 1917.
A análise marxista, excessivamente reducionista, foi parcialmente correta no diagnóstico, falha na terapia e um grande fiasco no prognóstico. Acertou na descrição da realidade econômica vigente em seu tempo, nos países industrializados do Ocidente.
Um modelo condenado ao desaparecimento, porque socialmente cruel e politicamente insustentável. Por isso, Marx acertou igualmente ao rotulá-lo de capitalismo, denominação apropriada para um sistema caracterizado pelo predomínio do grande capital, hegemônico e desconhecedor de regras, que espoliava os trabalhadores, esmagava os concorrentes, sufocava o empreendedorismo e arruinava milhões nas crises cíclicas.
O grande erro de Marx -incompreensível num pensador dialético- foi imaginar que o capitalismo permaneceria imutável, apenas agravado em seus defeitos, na forma de aumento da concentração da riqueza e crescente pauperização do trabalhador.
Por sua vez, o erro dos discípulos de Marx -principalmente Lênin e seus seguidores- foi não terem percebido que o remédio receitado, o socialismo, só teria validade se realizada a profecia da explosão do capitalismo, supostamente a ocorrer nos países mais desenvolvidos. Se tal não ocorresse, obviamente, o remédio não se aplicaria.
Não deu outra. Fracassou, 75 anos depois, ao perder a competição com o Ocidente, mais dinâmico e eficiente, e onde o velho capitalismo morrera, não por explosão, como previra Marx, mas por evolução mutante, ao se transformar numa espécie de natureza diferente: a economia de mercado.
A rigor, um pós-capitalismo, que a obsolescência das idéias não consegue distinguir do velho capitalismo. Na verdade, o capitalismo do tempo de Marx era a negação da economia de mercado. Tratava-se de um regime selvagem, sem regras, no qual prevalecia a lei do mais forte. Só foi possível num vácuo institucional, sem leis trabalhistas, sem rede previdenciária, sem Organização Mundial do Comércio, sem mecanismos anticíclicos, sem legislação antitruste nem de defesa do consumidor. Era o império da violência e do jogo sujo, nas relações entre países, nas relações entre empresas concorrentes, nas relações entre vendedores e consumidores e nas relações entre patrões e empregados.
Ora, o sistema de mercado só funciona bem dentro de um marco institucional, interno e internacional, solidamente estabelecido. Vale dizer, precisa de paz, de regras claras e de segurança jurídica, tudo que não havia na época do velho capitalismo e do seu corolário, o neocolonialismo.
Em resumo, só vai entender a realidade do mundo atual quem tiver a noção clara da natureza, da evolução e do papel de duas instituições fundamentais em qualquer país: o Estado e o mercado. No velho capitalismo, o mercado foi anulado pela omissão do Estado; no socialismo real, pela hipertrofia do Estado.
Em nosso tempo, vai tornando-se evidente que Estado e mercado são instituições indispensáveis e complementares, cada uma em seu papel. Vai ficar perdido e confuso quem continuar raciocinando e agindo em termos de capitalismo e socialismo, duas peças da arqueologia política.
Claro que a passagem para o pós-capitalismo ainda não se completou nem se processa de maneira uniforme no mundo. Em todos os países, remanescem vestígios do velho capitalismo, variando o seu peso de acordo com as especificidades de cada um.
No Brasil, há de se fazer um contínuo aperfeiçoamento do arcabouço institucional, para remover o entulho que impede o pleno funcionamento da economia de mercado.
Mas, antes, é preciso remover a sucata mental, resquício cultural do passado, que impede a plena compreensão do mundo de hoje e, ainda mais, do de amanhã.

Nenhum comentário: