Publico, na íntegra, o texto de Luiz Flávio Gomes sobre a lei seca no trânsito. O blog concorda integralmente com a opinião do jurista.
Lei seca: exageros, equívocos e abusos
LUIZ FLÁVIO GOMES
A TRAGÉDIA gerada no Brasil pelos acidentes de trânsito está devidamente quantificada: cerca de 35 mil mortes por ano, 400 mil feridos, 1,5 milhão de acidentes e R$ 22 bilhões por ano só para cobrir gastos com desastres em estradas federais. Política de tolerância zero: eis a bandeira da lei 11.705/08, marcada por exageros, equívocos e abusos.
Primeiro, a quantidade ínfima de álcool no sangue deve ser desconsiderada. Uma pessoa chegou a ser flagrada após ter ingerido dois bombons com licor. É um exagero. Por mais que se queira evitar tantas mortes no trânsito, não pode nunca a administração pública atuar sem razoabilidade. Quem usa um anti-séptico bucal não pode sofrer nenhum tipo de sanção. A infração administrativa do artigo 165 exige estar sob influência do álcool ou outra substância psicoativa. Nem toda quantidade de álcool no sangue é suficiente para configurar a infração administrativa do artigo 165.
O parágrafo único do novo artigo 276 diz: "Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos". Nesse caso, o sujeito deve ser liberado e o carro também. Não se aplica multa e não se fala em prisão. Não é necessário que uma terceira pessoa venha a conduzir o veículo.
Outro grave equívoco a ser evitado consiste em prender em flagrante o sujeito sempre que esteja dirigindo com seis decigramas ou mais de álcool por litro de sangue -o equivalente a dois copos de cerveja. A existência do crime do artigo 306 pressupõe não só o estar bêbado mas também o dirigir anormalmente, ou seja, a soma de condutor anormal (bêbado) e condução anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária).
Não há crime sem condução anormal. Não se pode nunca confundir a infração administrativa com a penal -aquela pode ter por fundamento o perigo abstrato; esta, jamais. O direito penal atual é dotado de uma série de garantias, como a ofensividade, que consiste em exigir, em todo crime, uma ofensa concreta ao bem jurídico protegido. Constitui grave equívoco interpretar a lei seca "secamente". A prisão em flagrante de quem dirige normalmente é um abuso patente, que deve ser corrigido pelos juízes.
Em síntese, quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue), mas não chega a perturbar a segurança, não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante. O agente, nesse caso, sofre as conseqüências administrativas do artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), como multa e suspensão da habilitação, mas não pode ser preso em flagrante, não há que falar em fiança etc. Claro que o carro fica apreendido até que um terceiro, sóbrio, o conduza. Mas nem sequer é o caso de ir à Delegacia de Polícia.
A prova da embriaguez se faz por meio de exame de sangue ou bafômetro ou exame clínico. A premissa básica é a seguinte: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo. O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova, ou seja, não está obrigado a ceder sangue ou a soprar o bafômetro. Havendo recusa, resta o exame clínico, feito em geral nos Institutos Médico Legais.
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar o exame de sangue e o bafômetro. Porém, não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Alguns delegados falam de prisão em flagrante por desobediência. Isso é equivocado. Não é isso o que diz o novo parágrafo 3º do artigo 277 do CTB. O correto não é falar em desobediência, mas nas sanções administrativas do artigo 165, e somente quando houver recusa ao exame clínico. A recusa do exame de sangue e do bafômetro não pode sujeitar o motorista a nenhuma sanção, porque ele conta com o direito constitucional de não se auto-incriminar.
Além disso, a fiscalização intensa nos últimos dias comprovou que ela é que é fundamental na prevenção de acidentes. É um equívoco imaginar que leis mais duras são suficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da educação, conscientização, engenharia e punição.
O legislador adotou a política da tolerância zero, mas ainda há graves falhas na legislação brasileira, que não conta, por exemplo, com o delito de condução homicida, que consiste em dirigir veículo com temeridade manifesta e total menosprezo à vida alheia.
Há muito ainda que fazer para aprimorar a legislação brasileira. Temos que declarar "guerra" contra as 35 mil mortes por ano no trânsito. Porém, tudo tem que ser feito sem exageros nem abusos. Não queremos viver perigosamente nas ruas e estradas brasileiras, mas também não estamos dispostos a suportar os excessos do poder público, que só pode atuar legitimamente dentro da razoabilidade.
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